Corpo e Matéria na Vida Espiritual
PARTE I
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A origem deste texto deve ser encontrado numa pergunta que eu fiz algum tempo atrás: "Se alguém que é privado de uma vida psicológica consciente, uma pessoa mentalmente deficiente, por exemplo, pode ter uma vida em Deus?". Foi esta pergunta que me levou a dar mais atenção ao problema do corpo e ao problema do espírito, e sua relação com Deus.
Agora eu gostaria de dirigir sua atenção ao fato de que quando falamos de nossa vida espiritual, quase sempre, a menos que sejamos muito cuidadosos, pensamos no lado psicológico da nossa natureza. Falamos da nossa vida espiritual em termos do nosso conhecimento consciente de Deus, da nossa resposta emocional no raio de luz que chamamos nossa consciência. Este, contudo, é um campo muito limitado. Sabemos da psicologia, não somente a moderna, mas também a antiga, sabemos que há um mundo todo de sombra e escuridão. Sombra, fora da qual as coisas emergem e dentro das quais as coisas desaparecem: nossas memórias, coisas que agora podemos lembrar, que foram vividas anteriormente, mas que mais tarde serão esquecidas. Há também aquele mundo que foi estudado profundamente, e que precisa ser descoberto cada vez mais profundamente, a vida inconsciente do homem.
Mas à parte, isto, precisamos lembrar que o homem não é simplesmente uma alma ou uma consciência. O homem total é um ser feito de corpo e alma juntos, e é somente na junção de ambos que o homem é completo. É ensinamento Ortodoxo que certamente a totalidade da eterna bem-aventurança, será dada aos santos, somente quando revestidos do corpo da ressureição. A totalidade do homem é encarnada - nunca está dividida em duas. Separado da alma, o corpo torna-se um cadáver - separado do corpo a alma torna-se um morto. Homem enquanto homem é encarnado.
Se nós desejamos olhar para coisas no homem que não estejam sujeitas a uma interpretação fantasiosa e a uma hesitação constante, não é certamente para a consciência do homem que nós devemos olhar. O domínio psicológico do homem está em constante movimento, ele muda a todo o momento tal como as ondas do mar. Isto não é uma surpresa. Por um lado este campo da consciência aumenta e diminui de acordo com as leis da nossa natureza física e psicológica, e por outro lado ele reflete como a face de um lago que vai a ambos espírito e corpo. Quer vá ao fundo ou ao alto no que nós chamamos o "espírito do homem", aconteça o que acontecer entre este espírito e o divino Espírito encontramos um reflexo em nossa consciência; e aconteça o que acontecer em nosso corpo, se é simplesmente ocorrência física de saúde ou doença, ou as mais elevadas atividades da mente humana, também reflete em nossa consciência. Mas embora em ambos os casos nós possamos falar de reflexo e não de alguma coisa que pertença completamente ao campo da alma ou psique ou da consciência, um reflexo significa que o que é visto refletido é somente parcialmente verdade. Por outro lado é suficiente uma brisa tocar a superfície das águas, para que tudo mude a forma. O céu e as nuvens e o que quer que surja na borda do lago começa a se mover e a mudar seu aspecto. Se você quiser tirar um conclusão olhando para um espelho - como para o que está refletido nele - você precisa ser extremamente cuidadoso; é parcial e é sempre distorcido em um ou outro grau, e muito comumente como num lago, as coisas vão para cima e para baixo. Isto não é simplesmente uma brincadeira. Se você olhar para a nossa situação em relação a Deus, quão comumente deduzimos Deus a partir de nós mesmos, em vez de a partir de Deus deduzirmos nós mesmos em relação a Deus. Isto é o que ainda não aprendemos a consertar pela experiência espiritual.
Eu estou certo do fato de que há uma profunda conexão entre o corpo e a alma do homem. Isto pode ser mostrado facilmente em dois níveis. Por um lado todos sabemos do interesse que tem crescido na última década em relação a doenças psicossomáticas. Estamos certos do fato de que as coisas que vão na alma do homem não são somente vagamente refletidos no estado do seu corpo, mas que de acordo com um mecanismo definido de uma forma sistemática elas provocam a mesma resposta nos órgãos desse corpo, particularmente no sistema nervoso do homem. Por outro lado, se nos voltarmos para religião e para a experiência espiritual, para Oriente ou Ocidente, descobriremos que desde os tempos remotos as pessoas estavam certas do fato de que há um trânsito e o corpo que ele possui. Então enquanto é verdade que as coisas que acontecem na alma refletem no corpo, é também verdade que o corpo por sua parte tem uma verdadeira e grande influência no reino psicológico da vida do homem.
Eu gostaria aqui de fazer uma consideração geral, e então dar dois exemplos. Se você estudar psicologia e fisiologia você descobrirá muito facilmente e no nível da simples e muito elementar fisiologia - que todo evento psicológico, todo evento emocional, toda atividade intelectual, resulta em mudanças glandulares, mudanças musculares e assim por diante. Aqui estão dois exemplos que podemos dar valor. O primeiro é da arte. Se você olhar para uma estátua como "O Pensador" de Rodin, você verá clara e plasticamente, o que eu penso. Este homem está sentado, pensando; mas quando você vê esta estátua você descobre que ele não está pensando somente com seu cérebro. Ele pensa com o total dele mesmo. Todo o seu corpo está debruçado sobre o pensar, ele está pensando com todos os músculos, com todas as partes do seu corpo, com a total posição do seu corpo. Ele é um homem que está transformado em pensamento encarnado. Então se você prefere, pensamento e encarnação são a mesma coisa em uma certa profundidade. Claro que quando nosso pensamento é superficial ele atinge uma expansão menor tanto quanto a percepção do nosso corpo está envolvida. Quando franzimos a sobrancelha, a expressão em nossa face muda e assim por diante. E agora vamos ao meu segundo exemplo. Este conhecimento é usado pelos ascetas da escola hesicasta, nos séculos XI e XIV, para formar um método para produzir um estado psicológico que poderia então ser usado com o objetivo de orar em um modo imperturbável. O estado psicológico de total atenção, total desengajamento da paixão e do pensamento desordenado é atingido por meio de uma técnica física. Eles nunca foram pensados como sendo oração em si mesmos. Eles eram métodos pelos quais as condições podiam ser estabelecidas, através dos quais a oração podia ser imperturbável. Isto se aplica a ambos: às paixões e às desordens intelectuais.
Quando pensamos no homem hoje, estamos acostumados a pensar em termos racionais, pensamos no homem em seu intelecto, ou em sua vida emocional na extensão de que é uma parte da sua vida consciente, e esquecemos que o homem tem raízes infinitamente mais profundas do que isso; e que o seu intelecto do qual ele é tão orgulhoso e suas emoções as quais ele é não inábil em controlar não são o homem total e estão muito longe disso. A existência do homem está enraizada em um ato da divina vontade. Todos existimos porque fomos desejados por Deus. E esta divina vontade é um ato, não de condescendência, mas de amor: é um ato em que Deus criou o homem com o propósito de fazer dele participante de tudo que Ele possui e de quase tudo que Ele é. Nós somos "deuses" por vocação. A diferença entre nós e Deus, neste processo e nesta obtenção da deificação, pousa no fato de que podemos ser "deuses" pela participação não "deuses" pela natureza; do mesmo modo pelo qual Cristo foi homem pela participação em nossa natureza, e Deus Nele mesmo. E neste ato de Deus, nesta palavra criadora de Deus, em Sua experiência de vontade e de amor, está a nossa raiz. Nós não temos raízes em nós mesmos e nós não temos raízes em Deus, tão longe quanto diz respeito à natureza, e isto nos dá completa dependência Dele e, ao mesmo tempo, uma estranha qualidade de independência. Existimos porque fomos desejados, e ainda porque não somos uma necessidade de Deus, porque o ato da criação não é necessário para que Deus seja Ele mesmo, porque num certo sentido, somos supérfluos a Ele, porque Ele é plenitude sem nós, e nós possuímos uma peculiar independência. Não somos um reflexo Dele, não somos uma sombra Dele, não somos um menor aspecto de Sua existência. Somos nós mesmos, colocados face a face com Deus, derivando nossa existência da Sua vontade e ainda, independente Dele, em que nós podemos aceitar ou rejeitar Ele e o que Ele oferece e o que Ele dá. A vontade de Deus é poderosa. Ele pode criar, Ele pode fazer o que Ele escolher, salvo uma coisa; Ele não pode obrigar nenhuma criatura a amá-Lo, porque o amor é soberanamente livre e é incompatível com qualquer tipo de coerção ou determinação.
Quando dizemos que fomos desejados por Deus, é porque ante de existirmos fomos amados por Ele, nós definimos a verdadeira raiz, e a verdadeira pedra sobre a qual nossa existência repousa. Mas não devemos nos enganar; não somos seres espirituais, não somos uma alma aprisionada por um corpo ou uma alma que por tempo está conectada com um corpo; somos um espírito encarnado, e a plenitude do homem não está assentada em seu espírito ou em sua alma, mas em espírito-alma junto com seu corpo. Neste aspecto nosso corpo tem uma significância infinitamente maior e possibilidades infinitamente maiores do que usualmente lembramos. Se voltarmos à revelação bíblica e ao espírito e aos fatos do Velho e do Novo Testamento, eu acho que isto se torna tão claro que, o que quer que Deus tenha criado foi criado alerta, vivo, e não inerte e morto. Falamos da matéria morte, da matéria inerte e agora somos cegos e insensíveis à vida das coisas, a matéria é pesada, opaca e inerte. Mas para Deus, não é nenhuma destas coisas. Deus criou todas as coisas para que elas possam viver e rejubilar Nele. Isto não implica que as coisas têm o mesmo tipo de consciência que possuímos; mas quem pode dizer que o tipo de consciência que nós temos é algo melhor, algo mais profundo, algo mais Deus-consciente do que qualquer outro tipo de consciência pode ser? As coisas estão em Deus: elas são capazes de conhecer Seu mestre e elas são capazes de rejubilar com Seu Salvador; e elas são capazes de brilhar, de refletir a luz do próprio Deus. De outra maneira, todos os milagres, nos quais natureza e carne estão envolvidos, no Velho e no Novo Testamento, deixam de ser milagres e tornam-se atos de magia, não atos de harmonia, de amizade, de obediência e alegria da parte da natureza, que ouve as palavras de Deus e percebe sua vontade, mas unilateralmente atos de poder, agindo sobre uma natureza passiva e, por conseguinte, sem sentido; Deus centrado e homem centrado, mas deixando de lado a totalidade da criação. Quando o Senhor Jesus Cristo comanda às ondas furiosas a se acalmarem e ao vento a não mais soprar no mar da Galiléia, quando em vários eventos do Novo testamento ele comanda às coisas a responder à sua voz, quando ele ressuscita Lázaro ou todas as vezes que ele realiza outros poderosos trabalhos, há uma afinidade, uma relação entre o que é criado por Deus e Ele. Há harmonia.
